Aleijadinho: os fragmentos de Antonio Francisco Lisboa
Mesmo prestes a completar o bicentenário da morte de Antonio Francisco Lisboa (1730-1814) – mais conhecido como Aleijadinho, sua biografia ainda é cercada de controvérsias. Entre lacunas e poucos registros, sua trajetória foi recriada diversas vezes ao longo do tempo, servindo como forma de afirmação do que é a cultura nacional. Dessa maneira, falar em Aleijadinho significa não só relatar as proezas do mulato cujas mazelas físicas lhe garantiram a alcunha e a genialidade. Trata-se de considerar a dinâmica do processo de construção identitária, admitindo a existência de várias personagens (“Aleijadinhos”); eleitas e cunhadas segundo ideologias intimamente ligadas à formação da identidade nacional brasileira.
Entre fragmentos e mitos, o conhecido hoje no senso comum é a história de um mestiço – filho do arquiteto e mestre de obras português Manuel Francisco Lisboa e uma de suas escravas – que, por volta dos 40 anos, foi acometido por uma grave e misteriosa doença degenerativa. Lepra, porfiria e poliomielite são apenas algumas das conjecturas acerca da enfermidade que levou Aleijadinho a esculpir com ferramentas amarradas às mãos inválidas. Não obstante, mostrou-se brilhante escultor, arquiteto e entalhador; tornando-se o maior expoente da arte colonial no Brasil. Os modos recluso e irritadiço do artista eram reflexos de sua horrenda e disforme aparência; paradoxo à beleza de seu estilo único e inovador de trabalhar a madeira e a pedra-sabão. O Quasímodo dos trópicos teria sido o responsável pela realização de inúmeras obras sacras (dentre esculturas, projetos, altares) em um período no qual, segundo pesquisas recentes (Guiomar Grammont), sequer havia a noção de autoria, arte e artista conforme conhecemos hoje. Nota-se, então, que o imaginário atual acerca de Antonio Francisco Lisboa corresponde à mescla dos Aleijadinhos romântico, modernista; dos relatos de viajantes e tantos outros; corroborados por políticas públicas e por vezes eivados de anacronismos. Permanências e rupturas, inerentes, perpassam a história do “trabalho manual de um homem sem mãos”, conforme descreveu o inglês Richard Burton sobre sua viagem à Congonhas em 1867.
Um dos poucos consensos acerca de sua vida certamente refere-se ao fascínio e importância de suas obras. Profetas, santos e anjos, intrínsecos às paisagens e história brasileiras, e salvaguardados como patrimônio histórico, artístico e cultural; mostram que, mesmo após 200 anos, Aleijadinho – e suas diversas (re) significações – permanece.
A partir de tais premissas, o projeto “Aleijadinho 3D”, uma iniciativa apoiada pela Universidade de São Paulo (USP), consistiu na digitalização (com equipamento não invasivo) do Adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, MG, atribuído ao artista. O objetivo é divulgá-lo por meio da internet, usando-se de técnicas avançadas de aquisição e tratamento de malhas tridimensionais em um portal da web de simples acesso, de maneira que a população tenha a possibilidade de conhecê-las com o uso de computadores.
Referências
“Bíblia de pedra sabão”: o Adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos
No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu
Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas
(Oswald de Andrade)
O Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais, foi reconhecido como Patrimônio Mundial pela UNESCO em 1985, sendo o último empreendimento de grande porte ao qual Aleijadinho dedicou-se. Inspirado em exemplares lusitanos (Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego, e Igreja de Bom Jesus do Monte, em Braga), a obra foi encomendada pelo português Feliciano Mendes em promessa pela cura de uma enfermidade.
Construído entre meados do século XVIII e o início do século XIX, o santuário abriga uma igreja; o adro com muros e escadaria, na qual estão 12 profetas do Antigo Testamento (Isaías, Jeremias, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Abdias, Amós, Jonas, Habacuque e Naum) esculpidos em pedra-sabão; e os Passos (seis capelas que ilustram a Via Crucis, com 76 esculturas de madeira policromada).
O conjunto, realizado em etapas, carrega o debate de autoria que cerca as obras de Antonio Lisboa: no imaginário popular, é comum ouvir-se que ele foi o único responsável pela execução do santuário. Há também aqueles que atribuem aos discípulos as estátuas da Via Crucis, devido a certas diferenças anatômicas em relação aos profetas do Adro da Basílica. Outro mito recorrente, é que elas foram feitas pelo próprio artista; e as “deformidades” seriam reflexos de seu próprio estado de saúde, uma vez que a doença degenerativa já havia minado grande parte de suas forças, humor e movimentos. Aleijadinho cobria-se completamente durante o dia, e evitava as ruas. A debilidade motora logo chegaria às pernas, exigindo que saísse sempre carregado por um de seus escravos.
As obras escolhidas para o projeto fazem parte do Adro do Santuário, considerado uma das pérolas da arte colonial brasileira; e no qual o destaque está em sua originalidade: a arquitetura é subjugada em favor das estátuas dos 12 profetas de pedra-sabão, dispostos de maneira assimétrica e, ainda assim harmoniosa.
A digitalização desse acervo aberto é de fundamental importância para sua preservação, não só pela suscetibilidade às intempéries. O portal possibilita o acesso de qualquer parte do mundo, podendo ser utilizado como ferramenta educacional. A divulgação é, portanto, a melhor maneira de preservar um bem cultural.
Referências
Referências
BURY, John. "Os doze Profetas de Congonhas do Campo". In: BURY, John & OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de (org.). Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. IPHAN / Monumenta, 2006, pp. 46-47.
CANCLINI, Nestor Garcia. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Brasília, n.23, 1994, pp. 95-111.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 3ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção de um herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
HAAG, Carlos. Paranoia ou mistificação? Aleijadinho, se é que existiu, serviu a muitas ideologias. In: Revista Pesquisa FAPESP. São Paulo, n. 153, 2008. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2008/11/01/paranoia-oumistificacao/. Acesso em 20 de outubro de 2013.
LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. In: FERREIRA, Marieta de M.; AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da História Oral. 8ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. pp. 167-182.
MAGALHÃES, Aloísio. E o triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Roberto Marinho, 1997.
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro. IEPHA/MG entrevista: Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. s/d. Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/component/content/article/1/686-iephamg-entrevistamyriam-andrade-ribeiro-de-oliveira. Acesso em 25 de novembro de 2013.
UNESCO. Patrimônio mundial no Brasil. 2. ed. Brasília: UNESCO, Caixa Econômica Federal, 2002.